Deus da Carnificina
O convívio social pede boas maneiras. Ninguém diz totalmente o que pensa. Na superfície todos são cheios de virtude e a cordialidade é uma qualidade mantida para harmonizar os relacionamentos. Deus da Carnificina, peça de Yasmina Reza, é um interessante estudo, quase que antropológico, que constata que o ser humano utiliza personagens no convívio social, as pessoas no fundo escondem sua verdadeira natureza, o que realmente pensam dos outros e o que realmente pensam de si. O trabalho desta vencedora do Tony, prêmio máximo do teatro, foi adaptado para o cinema pelo diretor Roman Polanski que trouxe Jodie Foster, Kate Winslet, Christoph Waltz e John C.Reilly para viver o quarteto de personagens principais. Polanski, na verdade, não faz bem um trabalho de adaptação, já que o texto mantém sua integralidade nesta versão cinematográfica, o que é o grande equívoco do filme. No entanto, não deixa de ser interessante ver os quatro atores dando suas versões para os fatos e se empenhando em defender os personagens de Reza.
Deus da Carnificina começa quando os filhos dos casais Longstreet e Cowan se metem em uma briga no parque. O que começa como uma conciliação entre pais de agressor e vítima acaba em um verdadeiro duelo de acusações entre os quatro envolvidos. Tratando os adultos como verdadeiras crianças, o filme é totalmente ambientado no apartamento dos Longstreets, uma decisão que revela o apego de Polanski com a abordagem teatral, mas parece apropriado ao considerar o espaço como uma espécie de gaiola que expõe seus personagens à observação e análise crítica do espectador. O novo trabalho do diretor também acerta ao priorizar o humor e tornar as preocupações do quarteto com as aparências ainda mais ridículas. Contudo, Polanski e Reza poderiam ter feito concessões por se tratar de uma abordagem para o cinema e não para o teatro.
Jodie Foster e John C.Reilly (Penélope e Michael Longstreet), sempre tentando minimizar os danos. |
O excesso e a rapidez dos diálogos não é o que atrapalha - Quentin Tarantino e Woody Allen estão aí para provar -, mas a forma como eles são apresentados merecia uma polida caprichada dos envolvidos. Ainda assim, o elenco contorna qualquer problema visível. A dinâmica entre o quatro atores é incrível, sendo difícil destacar uma interpretação sem ser injusto com as demais. Talvez Jodie Foster seja beneficiada pelo tratamento dado a sua personagem, a personificação mais clara da "teoria" levantada no filme. Penélope, como prefere ser chamada por quem ainda não é íntima, é uma mulher completamente controlada que preza pelas aparências e por ser exemplo de conduta como esposa e mãe. O evento envolvendo a briga de seu filho com outro garoto e a visita do casal vivido por Kate Winslet e Christoph Waltz desmorona o castelo de areia da personagem. Ela acaba todas as ranhuras de seu caráter, ranhuras que, afinal de contas, todos nós temos. No entanto, para Penélope, constatar isso é simplesmente dar o braço a torcer: ela não é somente virtudes. Jodie Foster lida muito bem com esta trajetória de sua personagem, indo da autossuficiência para a insegurança gradualmente.
Entre os Cowan, a personagem de Kate Winslet, Nancy, também demonstra destempero. No fundo, suas angústias estão na omissão calculadamente irônica de seu marido, Alan Cowan. Alan é ausente da vida familiar não por descuido, por opção. Cowan considera a reunião promovida por Penélope uma grande perda de tempo, assim como toda sorte discussões domésticas, o que gera a irritação de sua mulher e dos demais. Diferente dos demais, Alan é o único que assume suas falhas de caráter, fazendo Christoph Waltz seguir um caminho inverso ao de seus colegas, o que é bem interessante por sinal. Para fechar o quadrado, John C. Reilly dá vida ao típico caso do marido que, sem se dar conta, acaba reproduzindo e obedecendo todas as orientações de sua esposa. Mas claro que toda a condescendência de Michael com Penélope vão pelo ralo quando o uísque chega como um quinto personagem na dinâmica de grupo.
A rivalidade pelo exemplo de conduta é a tônica na relação entre as personagens de Jodie Foster e Kate Winslet. |
Verborrágico e constrangedoramente revelador, Deus da Carnificina é um trabalho menos expositivo na carreira de Roman Polanski. Trata-se de um de seus rotineiros respiros cinematográficos dentro de sua própria filmografia. Após um filme conturbado como O Escritor Fantasma, uma comédia sobre comportamento humano. Aqui, o diretor também opta por interferir o mínimo que pode na guerra travada no apartamento dos Longstreet, o que é bem correto, no final das contas. O cineasta mostra-se presente na interpretação de seus atores, que acaba se revelando como o fio condutor de toda a história. No entanto, em seu novo filme, o diretor traz como mote a grande preocupação de sua carreira: evitar maniqueísmos, ainda que seus próprios personagens insistam em trazê-los à tona com as usuais máscaras sociais. Vai dizer que, vez ou outra, você não tem vontade de chutar o balde e dizer que a vida é tão nauseante quanto um bolo de maçã com pêra?
Carnage, 2011. Dir.: Roman Polanski. Roteiro: Roman Polanski e Yasmina Reza. Elenco: Jodie Foster, Kate Winslet, Christoph Waltz, John C.Reilly, Elvis Polanski, Eliot Berger. 80 min. Imagem Filmes.
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