Queime, queime

Sob o julgamento inquisidor dos fãs de Jack Kerouac, Walter Salles preserva o espírito do autor em Na Estrada.


Escrever sobre Na Estrada talvez seja uma das tarefas mais complicadas que resolvi encarar aqui. Justifica-se. O novo filme do brasileiro Walter Salles é baseado em uma obra literária (e aqui existe uma certa mistificação por parte de muitos) que, ainda por cima, é cultuada por várias pessoas e serviu de inspiração para uma geração inteira de artistas - de músicos como Bob Dylan, Jim Morrison, Joni Mitchell, Lou Reed e Beck, a cineastas como Francis Ford Coppola, Martin Scorsese, Wim Wenders, David Cronenberg e Gus Van Sant. Portanto, não sei se farei jus à paixão de muitos, o que posso dizer é que, em se tratando daquela que será a eterna comparação entre livro e filme On the Road, os dois são experiências fascinantes justamente por conseguirem existir como obra sem utilizar o outro como muleta. Mais uma observação junta-se à anterior: Walter Salles foi o mais fiel que pôde a obra mais famosa de Kerouac, levando-se em consideração que levá-la para as telas é tarefa das mais ingratas.

Kerouac escreveu On the Road como uma espécie de diário de viagem relatando as experiências que viveu nas estradas dos Estados Unidos ao lado de Neal Cassady, um jovem irresponsável que aspirava ser escritor, mas que tinha talento mesmo para o sexo e para a bebedeira. A verdade é que Jack acabou fascinado pela figura de Cassady, especialmente pela maneira com que conduzia sua própria vida. Para evitar maiores problemas, Kerouac resolveu alterar os nomes dos personagens reais. Ele se nomeou Sal Paradise e batizou Neal de Dean Moriarty. A obra de Kerouac rodou o mundo e tornou-se uma verdadeira Bíblia daquela que foi chamada de "Geração Beat", jovens que, como Dean, exaltavam a vida nômade e a liberdade em todos os sentidos.  



O filme fez parte da seleção do último Festival de Cannes e colecionou reações mornas. Compreensível, Na Estrada chega com um certo atraso nos cinemas e sofre com a inevitável sensação de déjà vu. Como mencionei, a obra de Kerouac inspirou vários cineastas e, apesar de nunca ter recebido uma adaptação própria, foi referência para uma nova vertente. Na verdade, On the Road praticamente definiu as diretrizes do que se convencionou chamar road movie. Sem Destino, clássico com Peter Fonda e Dennis Hopper, por exemplo, bebe da fonte da "Bíblia da Contracultura". Assim, se existem problemas em Na Estrada eles transcendem o próprio filme. O problema aqui é de fruição, faltou timing para o longa. Chegou na hora errada.


Com seus inúmeros problemas de bastidores, os direitos do livro foram adquiridos por Francis Ford Coppola na década de 1970 e quase ganhou uma versão com Johnny Depp e Colin Farrell, sob o comando de Gus Van Sant (anos atrás, havia sido cobiçado por Marlon Brando que, após desentendimentos com Kerouac abandonou o barco, e Joel Schumacher), na década passada. Até que Walter Salles, a convite do próprio Coppola, após elogios rasgados a Diários de Motocicleta, assume as rédeas do projeto. 

Mais uma vez é importante lembrar que aceitar a empreitada de levar um livro praticamente sacro para as telonas não é nada fácil e o diretor e seu roteirista, Jose Rivera, conseguem fazer um trabalho muito interessante de síntese, organização das ideias e dos fatos narrados por Kerouac, além da preservação do espírito do autor. Na verdade, o espírito preservado em Na Estrada é o espírito de Dean Moriarty. Assim como no livro, Salles e Rivera trouxeram para a tela - e aqui não me refiro apenas à interpretação de Garrett Hedlund, mas a todos os elementos estéticos e técnicos do longa -, a personalidade de Moriarty, ou seja, a personalidade criada, idealizada e desconstruída pelo narrador. Compreendendo que toda a perspectiva do filme é de Sal Paradise, Salles e Rivera criam um ciclo formidável que, a princípio, mostra Moriarty como uma espécie de mito para mostrar em seu desfecho o personagem  como um homem em conflito com  as responsabilidades do matrimônio e da maternidade (em suma, da vida adulta),  com dificuldades em manter vínculos afetivos e extremamente autodestrutivo. Enfim, Dean deixa de ser mito e passa a ser humano. O que não deixa de ser menos fascinante. Não por acaso, após essa constatação, surge a inspiração para Kerouac escrever as primeiras linhas de On the Road.


Em Na Estrada, Walter Salles ainda conta com a interpretação magnética e surpreendente de Garrett Hedlund. Digo surpreendente porque, até então, Hedlund só tinha no currículo interpretações rasteiras em Tron - O Legado e Onde o Amor Está. Aqui, Hedlund entra de cabeça em um processo de composição delicado e complexo, construindo Dean Moriarty para depois descontruí-lo aos olhos de Sal. O trabalho de Hedlund é tão interessante que pode-se dizer que Na Estrada não seria tão completo sem sua presença. Sam Riley, intérprete de Sal/Kerouac, tem uma composição mais discreta, algo perfeitamente compreensível já que seu personagem representa os olhos e ouvidos do espectador. Kristen Stewart interpreta a ninfeta, e ninfomaníaca, Marylou. Uma participação que certamente surpreenderá quem tem aversão à  moça pela "saga" Crepúsculo. O trabalho de Stewart é admirável pela entrega, mais que pelo êxito profissional. Na Estrada traz indícios de que a atriz, hoje um dos maiores (se não o maior) cachê de Hollywood, não seguirá os caminhos mais óbvios e confortáveis. Por si só, isso é muito bom.

 Ao longo do filme, alguns atores dão o ar da graça. Tom Sturridge faz Carlo Marx, que na verdade é o poeta Allen Ginsberg, e consegue trazer contornos interessantes ao personagem, evitando as afetações, uma armadilha fácil para alguns atores. Kirsten Dunst está excelente como Camille, esposa de Moriarty. Viggo Mortensen também está no filme como Bull Lee, na realidade William Burroughs, e é igualmente interessante. Mas Amy Adams, que interpreta a esposa do escritor, surpreende ao assumir um papel inusitado em sua carreira. Afinal quem está acostumado com suas frágeis e doces heroínas, provavelmente tomará um susto ao vê-la como uma mulher com sérios distúrbios mentais à procura de lagartos no jardim de sua própria casa.


Com Na Estrada, Walter Salles faz um filme que respeita o material original sem que com isso se acovarde e não chame a história para si. O diretor não reverencia cegamente a "Geração Beat", nem  a desrespeita com julgamentos morais. Mais interessante ainda, o realizador consegue trazer a constatação de que por trás de tanta transgressão e liberdade existia muita solidão e uma busca insaciável e desmedida por uma identidade em Dean, Sal e Marylou. Não há como negar que há propósitos consistentes em toda a projeção. O cineasta consegue o improvável, sobreviver aos olhares descrentes de quem ainda pensa que o cinema, diferente da literatura, tem muito pouco a oferecer. Tolinhos...



On the Road, 2012. Dir.: Walter Salles. Roteiro: Jose Rivera. Elenco: Garrett Hedlund, Sam Riley, Kristen Stewart, Tom Sturridge, Kirsten Dunst, Viggo Mortensen, Amy Adams, Elizabeth Moss, Alice Braga, Steve Buscemi, Terrence Howard, Danny Morgan. 137 min. Playarte.

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Chovendo Sapos: Queime, queime
Queime, queime
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