Crítica: Obsessão

 

 Ainda que não goste de Obsessão, ninguém pode acusar o cineasta Lee Daniels e a sua musa, Nicole Kidman, da falta de ousadia. Se existe uma característica que une os dois protagonistas absolutos desta produção e que merece reverência irrestrita é o ímpeto de arriscar-se, navegar por águas turbulentas e desconhecidas, que estes dois têm e que encontraram vazão juntos neste thriller aparentemente banal nas páginas do livro Paperboy, de Peter Dexter, também roteirista do longa.
 
 Kidman dispensa comentários. No auge de sua fama e fortuna em Hollywood, após os sucessos de Moulin Rouge! e Os Outros,  a australiana apostou alto com papeis arriscados em filmes difíceis e "marginais", dirigidos por cineastas com marcas autorais, como Lars Von Trier (Dogville), Jonathan Glazer (Reencarnação) e Noah Baumbach (Margot e o Casamento), isso sem contar seu passado marcado por parcerias com o gênio Stanley Kubrick (De Olhos bem Fechados) e o eclético Gus Van Sant (Um Sonho sem Limites). Enfim, não é a trajetória comum para uma estrela hollywoodiana.
 
Recém saído de uma indicação ao Oscar de melhor direção por Preciosa, Lee Daniels dirigiu Obsessão, um filme que está longe de conquistar a popularidade do seu longa mais conhecido. Todos os seus filmes são marcados por riscos, não necessariamente pelos temas que escolhe, mas pela forma com que ele conduz suas histórias. Por ai você pode imaginar o que rendeu o encontro destes dois "suicidas" em potencial. Pura explosão.
 
Obsessão se passa nos EUA da década de 1970, interior da Flórida. Jack (Zac Efron) é surpreendido pelo retorno do seu irmão mais velho, Ward (Matthew McConaughey), que aparece com um objetivo bem definido, tentar inocentar um homem preso por assassinato, chamado Hillary Van Wetter (John Cusack). A investigação do caso por Ward, acaba levando Jack a Charlotte Bless (Kidman), noiva do acusado, uma mulher de intenções sinuosas que coleciona namorados no "corredor da morte" e que espera que Hillary seja o grande e definitivo amor da sua vida.

Tudo em Obsessão é milimetricamente planejado, os cortes desajeitados, planos desenquadrados e a linguagem que flerta escancaradamente com o exploitation, filmes de baixo orçamento com inclinações para o sensacionalismo, o grotesco e o bizarro, um "gênero" típicos do período retratado. O formato reforça o ambiente sujo, úmido e as almas desencontradas, doentias e confusas dos personagens de Obsessão. Só por esta consciência, o longa deveria ser revisto por seus "detratores". Há controle e conceito de linguagem em cada fotograma de Obsessão. Lee Daniels, que poderia ter optado por um formato tradicional de thriller, utiliza um aparente amadorismo a favor da sua própria história, um exercício de estilo completamente consciente e pertinente para fazer com que o público mergulhe no universo interior e exterior dos personagens. Nada é por acaso, nem mesmo a crueza e as fragilidades morais dos seus personagens. Ainda que discussões como o preconceito racial e sexual passem somente pela superfície do filme, um leve escorregão da produção já que ela mesma sugere adentrar nestes temas, mas jamais consegue aprofundá-los, a equação entre proposta e realização é cumprida por Lee Daniels do início ao fim.

 Zac Efron merece, enfim, os créditos que tanto buscou desde que saiu do High School Musical. Será difícil se desvencilhar da fama de ídolo adolescente e não vai ser Obsessão que reverterá este quadro, mas aqui o ator mostra ter mais futuro que seus contemporâneos de Crepúsculo, por exemplo. Como protagonista da produção, Efron consegue transformar Jack em um herói ingênuo em sua paixão por Charlotte e contraditório por suas filiações ideológicas. Matthew McConaughey, em fase extremamente produtiva, entrega um desempenho cheio de detalhes através do conflitante Ward, que sufoca sua sexualidade em um ambiente de extrema luxúria. Macy Gray, novamente sob a batuta do realizador (antes de Obsessão ela havia participado de Matadores de Aluguel) , é outro destaque da produção, conduzindo a história com sutileza já que sua Anita é testemunha de todos os acontecimentos e consegue captar melhor que todos os demais personagens da história o subtexto das situações que são geradas.
 
Claro que com uma personagem como Charlotte Bless (um nome sugestivo, já que "bless" em inglês é benção), Nicole Kidman é a grande atração do elenco. Loira, vulgar, ninfomaníaca e emocionalmente dependente, Charlotte é uma mulher cuja via de expressão é o sexo, é o que ela entende que pode dar de melhor para as pessoas como demonstração de zelo, amor, raiva, pena etc. A personagem cria com Jack uma espécie de vínculo materno e nem assim consegue afastar esta relação da sua sexualidade. Afetivamente, Charlotte é carente, insegura, submissa... Seu estranho fetiche por homens condenados à morte por crimes, que encontra paralelo com casos conhecidos (quem não se recorda de casos como os do Maníaco do Parque no Brasil, que após ser preso por assassinar de maneira cruel muitas garotas, começou a receber inúmeras cartas de pretendentes a esposa?), dá indícios de uma personalidade tão perturbada quanto a de seu noivo, Hillary. A atriz conta com a parceria de um John Cusack igualmente irreconhecível na pele do assustador Hillary, nitroglicerina pura o encontro dos dois. Para a personagem, Kidman realizou uma daquelas composições radicais, desenvolveu um sotaque sulista irretocável, montou o figurino da personagem com peças baratas de lojas de departamento e protagoniza, sem nenhum pudor, duas cenas que, nas palavras do próprio Daniels, definiram o tom de Obsessão e da própria personagem (não se preocupem que não vou entrar em detalhes).
 
Alguns podem pensar: o que deu na cabeça de Lee Daniels que, após uma indicação ao Oscar por Preciosa, realizou um filme como Obsessão? Particularmente, não vejo com bons olhos Preciosa, o avalio como uma produção irregular no alinhamento entre forma e proposta. Já Obsessão é um projeto coerente do início ao fim com o que Daniels pretendia fazer, um exploitation, ou melhor, sexploitation (!!!!). Um exercício de gênero, um teste para a definição das suas próprias marcas como realizador. De quebra, o diretor ainda traz um elenco improvável (quem esperava boas interpretações de Zac Efron, Macy Gray e até Matthew McConaughey, aqui antes de Killer Joe, Mud e do recente Dallas Buyers Club ?) e uma interpretação arrasadora de uma Nicole Kidman do jeito que a gente gosta, exposta ao desafios, aos riscos, impecável. 



 
The Paperboy, 2012. Dir.: Lee Daniels. Roteiro: Lee Daniels e Peter Dexter. Elenco: Zac Efron, Matthew McConaughey, Nicole Kidman, John Cusack, Macy Gray, David Oyelowo, Scott Glenn, Ned Bellamy, Nealla Gordon, Peter Murnik. 107 min. Europa Filmes

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Chovendo Sapos: Crítica: Obsessão
Crítica: Obsessão
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